O Jesus do Evangelho Q
- Igor Emerich
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Atualizado: há 1 dia

Resumo
Neste artigo [publicado originalmente na revista de História Gnarus, em 2024] propomos uma breve abordagem sobre a descoberta e o conteúdo daquele que ficou conhecido entre estudiosos da Bíblia e do Jesus histórico como evangelho Q, uma fonte hipotética de ditos e feitos de Jesus que teria sido usada por Mateus e Lucas, mas não por Marcos, na redação dos seus evangelhos, e que traria ecos dos ensinamentos e atitudes de Jesus de Nazaré preservados na tradição oral do(s) primeiro(s) movimento(s) de Jesus até serem postos por escrito cerca de duas décadas após a morte do nazareno. Com efeito, buscamos inserir o homem Jesus em seu contexto histórico, social, político, econômico e religioso. Para tanto, articulamos algumas das pesquisas dos principais estudiosos sobre o assunto. Dentre esses estudiosos estão Jonh Dominic Crossan, Burton L. Mack, Richard A. Horsley, Martin Goodman, Bart D. Ehrman, André Leonardo Chevitarese, Lair Amaro dos Santos Faria entre outros.
Palavras-chave: Evangelho Q. Jesus. Dominação romana. Reino de Deus. Movimento(s) de Jesus.
Introdução
O Iluminismo colocou a razão no centro de toda investigação, provocando uma mudança no paradigma epistemológico. Agora, tudo poderia ser analisado e explicado à luz da razão. Dessa forma, até a relação dos estudiosos com os textos tidos como sagrados sofreu mudanças.[1] Surge, então, o método histórico-crítico para a interpretação dos textos bíblicos e, tributária desse método, surge a chamada hipótese das duas fontes, proposta primeiramente pelo teólogo Christian Hermann Weisse, em 1838, que tentava responder o chamado "problema sinótico", ou seja, as semelhanças e diferenças entre os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Essa hipótese não ganhou muita força entre os exegetas em um primeiro momento. Isso porque, dentre outras coisas, a tal hipótese colocava o evangelho de Marcos como uma das fontes dos evangelhos de Mateus e de Lucas, portanto, Marcos seria cronologicamente anterior a esses dois evangelhos, só que Mateus era o preferido desses exegetas e tido como o primeiro a ter sido escrito. Mateus também tinha posição de destaque conferida pela própria Igreja. E para os estudos do Jesus histórico, "Mateus tinha sido feito sob medida. Seu retrato de Jesus era o mais aceitável".[2] Mas foi com o teólogo protestante Heinrich Julius Holtzmann, em 1863, que a hipótese das duas fontes se impôs entre os estudiosos. Holtzmann testou exaustivamente a referida hipótese mostrando que ela era de fato válida.
Mais tarde, em 1907, um exegeta conservador chamado Bernard Weiss provou que Lucas de fato usou Q como uma das fontes para sua narrativa. E ainda naquele mesmo ano, um historiador do cristianismo primitivo chamado Adolf von Harnack publicou um livro com os ditos e feitos de Q.[3] Essa trajetória deu aos estudos de Q uma posição de destaque entre os acadêmicos. Mas o que viria a ser a tal “hipótese das duas fontes”?
A hipótese das duas fontes
Nos anos 30 do século XIX, estudiosos notaram, colocando os evangelhos de Mateus e Lucas lado a lado, que ambos compartilhavam muitas perícopes do evangelho de Marcos, o que demonstrou que Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito. Mas esses mesmos estudiosos notaram que Mateus e Lucas também compartilharam centenas de ditos e feitos de Jesus que não estavam em Marcos. De onde vinham esses ditos? Que fonte era essa usada pelos redatores desses evangelhos? Essa fonte hipotética, que seria uma coleção de ditos e feitos de Jesus que teria circulado de forma oral antes de ser posta por escrito[4], foi chamada pelos estudiosos de "fonte Q", “livro Q”, "documento Q", "evangelho Q" ou somente "Q". "Q" é a abreviação da palavra Quelle, que em alemão quer dizer "fonte", por não saberem de que fonte se tratava, os estudiosos alemães decidiram-se por esse título.
Sabendo que Mateus e Lucas escreveram seus evangelhos em lugares e épocas diferentes e que ambos não se leram[5], de onde poderiam ter compartilhado centenas de ditos iguais de Jesus? Não pode ter sido obra do acaso! É aí que entra a hipótese das duas fontes. Os estudiosos já sabiam que Marcos havia servido de fonte para Mateus e Lucas e agora, ao conseguirem isolar de Mateus e Lucas um material em comum além do de Marcos, conseguiram reconstruir (em parte, pelo menos, pois não sabemos a verdadeira extensão dessa fonte)[6] aquela que teria sido a fonte mais antiga sobre os ditos e feitos de Jesus de Nazaré.
Hoje, sabemos que Mateus e Lucas usaram, cada um, pelo menos três fontes na redação de seus evangelhos: Marcos, Q, L[7] e M[8].
Evangelho Q: oralidade e memória entre os primeiros seguidores de Jesus
Sabe-se que o movimento de Jesus surgiu entre camponeses iletrados (do grego, agrammatoi) da Galileia da primeira metade do século I.[9] [10] Portanto, a transmissão daqueles que seriam os ditos e feitos de Jesus certamente aconteceu de forma oral em um primeiro momento e com a expansão desse movimento após a morte de Jesus, para que esses ditos e feitos fossem preservados, eles foram registrados por escrito por alguns convertidos que sabiam escrever. Sobre isso escreveu Lair Amaro dos Santos Faria:
"[...] os indivíduos, homens e mulheres, que ouviram e viram Jesus de Nazaré tornando-se crentes de uma utopia, o Reino de Deus, entenderam que a morte de seu líder fora o sinal para a disseminação de sua proposta 'por todo mundo. Por conseguinte, adotaram um estilo de vida itinerante, que, ao fim e ao cabo, era semelhante ao estilo de vida do próprio Jesus. Iletrados, como pessoas comuns de sua época, não transportavam os ditos e feitos de Jesus em anotações ou livros. Carregavam as lembranças daqueles dias na memória. Mas havia o risco de se perder, aos poucos, os detalhes das histórias. Talvez, quando de volta a localidades antes visitadas, as histórias já estivessem sendo contadas de forma diferentes. Daí, eles podem ter pensado numa forma de padronização das narrativas de modo a conservar as tradições de e sobre Jesus minimamente inalteradas. Assim, as primeiras versões escritas que surgiram reproduziriam as pregações dos missionários constituindo narrativas completas, comunicadas em encontros coletivos, e não textos em pedaços."[11]
Ainda sobre o analfabetismo e oralidade entre os camponeses galileus, Richard A. Horsley no diz que: "Muito provavelmente, quase todos os aldeões galileus seriam analfabetos, mas de forma nenhuma eram culturalmente ignorantes. Começamos a admitir que galileus como Jesus e os seus seguidores não teriam conhecido a mesma Torá/ Lei do modo como os 'escribas e fariseus' em Jerusalém a conheciam. Como reconhecem os antropólogos há algum tempo, as comunidades aldeãs cultivam e inspiram-se numa "pequena tradição', em contraste com a elite, que cultiva a 'grande tradição'. Na Galiléia, a 'pequena' tradição, ou tradição popular, teria informado e norteado 'os diferentes padrões de crença e comportamento valorizados pelos camponeses' daquelas sociedades agrárias. A tradição popular, consistindo em histórias, leis, costumes, orações, e assim por diante, teria sido cultivada na comunicação oral em comunidades camponesas."[12]
Isso provavelmente foi o que aconteceu com o evangelho Q e outras fontes orais no(s) princípio(s) do(s) movimento(s) de Jesus. Os 225 ditos de Jesus contidos em Q devem ter sido reunidos e postos por escrito, em grego, em meados do primeiro século[13], ou seja, teriam circulado de forma oral por cerca de 20 anos após a morte de Jesus. Pesquisas mostram que o provável local de redação de Q foi a Galileia.[14]
Contudo, não podemos considerar que as palavras de Jesus em Q sejam exatamente àquelas que Jesus de Nazaré teria pronunciado e que seus seguidores teriam guardado na memória e recontado através da oralidade até serem postas por escrito duas décadas depois. Isso porque a memória nem sempre é exata: "E, de fato, ela não é, já que algumas vezes (i) esquecemos alguma coisa; (ii) somos temporariamente incapazes de recobrar a memória de algum acontecimento; (iii) interferências impedem a memória de emergir para a consciência; e (iv) a informação simplesmente nunca foi armazenada na memória. Qualquer uma destas quatro razões pode provocar o esquecimento de um fato isolado. Neste sentido, o que se quer enfatizar aqui é o fato de a memória não ser tão acurada quanto gostaríamos que ela fosse."[15]
Ademais, pessoas que viveram experiências traumática, costumam enfrentar problemas com suas memórias.[16]
André Leonardo Chevitarese citando Elizabeth Loftus esclarece o seguinte: "Loftus (1980: 37) chamou atenção para o fato de as pessoas diferiram no que elas pensam, no que elas se lembram. Cada indivíduo é único; cada indivíduo é o produto da sua herança, do seu ambiente; cada indivíduo tem uma memória única. Mesmo irmãos gêmeos têm experiências diferentes, portanto memórias diferentes. Implica dizer, a memória é imperfeita, na medida em que ela não é exata. Mesmo se nós pegarmos uma recordação razoavelmente acurada de alguma experiência, isto não significa que ela permaneceu perfeitamente intacta na memória (LOFTUS, 1980: 37, 45-50, 63-76; 1979: 111). Traços da memória podem na verdade sofrer distorções por diferentes motivos, tais como: o passar do tempo; motivação própria; e a introdução de tipos especiais de interferências de fatos."[17]
John Dominic Crossan analisando os argumentos levantados por Loftus sobre os problemas com a memória nos adverte “[...] para termos bastante cuidado com a memória, mesmo quando ela está muito segura de si mesma”[18] e considera que “a memória é tanto ou mais reconstrução criativa que recordação exata e, infelizmente, muitas vezes é impossível dizer onde termina uma e começa a outra.”[19] Ou seja, para o autor, essa lembrança do passado se dá através de um processo de reconstrução. E tratando diretamente sobre oralidade e memória entre os primeiros seguidores de Jesus, escreveu Crossan: "No entanto, talvez um grupo incapaz de escrever e, portanto, muito mais dependente da tradição oral tenha memórias diferentes ou melhores do que as nossas. [...] Como a cultura de Jesus era entre 95 e 97% analfabeta, a memória e a oralidade podem ter interagido de maneira muito diferente do mundo moderno."[20]
Mas a tentativa de reconstrução das memórias que remetem ao Jesus histórico precisa ser feita levando-se em consideração o ambiente político, social, econômico e religioso em que Jesus e seus seguidores estavam inseridos.
A mensagem de Jesus no Evangelho Q e sua contextualização histórica, política, social, econômica e religiosa
No evangelho Q, logo no começo, lemos importantes ensinamentos atribuídos a Jesus. Sua mensagem central, a saber, que o Reino de Deus (que se apresenta em contraposição ao Império Romano ou qualquer outra forma de opressão!) é dos mendigos[21], que os famintos seriam saciados e os que choram iriam rir.[22] Essas palavras contidas em Q (e agora nos evangelhos canônicos de Mateus e Lucas) e que também se encontram na sentença 54 do evangelho de Tomé[23], parecem refletir a memória do Jesus histórico.
A Palestina, no primeiro século, foi palco de vários protestos populares contra a dominação romana e das elites políticas e religiosas judaicas. A perda de terras e a taxação excessiva que Roma e essas elites judaicas impunham sobre a produção dos camponeses da Judeia e da Galileia levaram ao empobrecimento e a degradação social daquelas regiões. Os vilipêndios contra a religião dos judeus como as “violações de suscetibilidades religiosas judaicas”, a exibição na “cidade santa de Jerusalém dos estandartes reverenciados pelos legionários”, por ordem do procurador romano Pilatos, o desvio dos fundos sagrados do Templo de Jerusalém pelo mesmo procurador romano para construção de um aqueduto, por determinação do imperador Gaio Calígula, e a instalação de uma estátua sua dentro do Templo de Jerusalém dentre outras atitudes romanas contra a fé judaica fez aumentar o descontentamento dos judeus contra os romanos e as elites judaicas subordinadas a esses romanos.[24]
A conjugação desses e de outros fatores parecem ter estimulado o surgimento de movimentos populares de resistência distintos (por ex., os zelotas e os movimentos proféticos e messiânicos), que tinham, ao fim e ao cabo, um objetivo em comum, a saber, se opor, através da violência ou do discurso áspero, aos opressores. A essa resistência, Roma respondia com violência e os movimentos populares reagiam, levando a uma “espiral de violência”, como escreveu Horsley.[25] É nesse ambiente rural sobretaxado, empobrecido, oprimido, socialmente conturbado, violento, mas extremamente religioso e resistente, é que está inserido Jesus e seu(s) movimento(s).[26] Sobre isso esclarece Horsley: "A conquista romana e a imposição de reis dependentes [reis judeus dependentes de Roma], acarretando camadas múltiplas de tributos e práticas econômicas e culturais socialmente desintegradoras, compuseram as condições da e para a missão de Jesus e de outros movimentos paralelos."[27]
E embora no tempo de Jesus não estivessem em ação nenhum grupo de oposição violento contra Roma e as elites judaicas, “a situação histórico-social em que Jesus vivia estava permeada de violência.”[28] Mas Jesus, não sendo “necessariamente um pacifista, opôs-se ativamente à violência, tanto opressiva como repressiva, tanto político-econômica como espiritual.”[29] Esse mesmo Jesus “[...] criticou e resistiu consistentemente à ordem política, econômica e religiosa opressora estabelecida de sua sociedade.”[30]
O Reino de Deus, instaurado por Jesus segundo Q, como vimos acima, seria, então, uma forma de oposição (não violenta!) à dominação e exploração romanas e das elites judaicas. Horsley, destacando o contexto político, social e econômico da Galileia no tempo de Jesus, mostra que para se compreender o(s) movimento(s) de Jesus, assim como muitos outros movimentos populares do século I na Palestina, não se pode desconsiderar que “o imperialismo romano determinava as condições de vida na Galileia”.[31] Conforme Horsley: "Jesus, por outro lado, falando e agindo tanto em Marcos como em Q a partir de uma tradição popular e da perspectiva dos camponeses da Galiléia, inclui a elite de Jerusalém entre os "governantes injustos' a quem Deus julgará. Este rápido esboço de padrão cultural israelita profundamente arraigado indica que ele estava em sintonia com as correntes antiimperialistas generalizadas e persistentes a Palestina”.[32]
Por causa desse e de outros “indícios” contidos em Q e em Marcos, como por exemplo as condenações proféticas de Jesus contra o Templo e contra os sumos sacerdotes, Horsley vê Jesus “como um profeta liderando um movimento de renovação de Israel”.[33] De acordo com o autor: "O lado construtivo do reino de Deus como renovação de Israel também comportava duas facetas. Jesus como profeta proclamou e estabeleceu a renovação divina do povo na promessa das bênçãos do reino e em curas e exorcismos dos efeitos debilitantes do imperialismo romano. Finalmente, em sua missão, que se voltava para as comunidades camponesas, Jesus proclamou uma ordem social alternativa de cooperação e justiça social livre de opressão."[34]
Crossan também se refere a essa oposição do Reino de Deus estabelecido por Jesus ao Império Romano e as elites judaicas. Segundo o autor: "Ao anunciar o Reino de Deus nos anos 20 na Baixa Galileia, Jesus e seus companheiros ensinavam, agiam e viviam em oposição à localização do reino de Roma por Herodes Antipas nas terras de seus camponeses."[35]
Contudo, Crossan enfatiza que essa resistência de Jesus não é uma resistência violenta, embora seja radical[36], diferente da biografia de Jesus escrita por Reza Aslan que, se apoiando sobretudo em Marcos e em Q, concebe Jesus como uma zelota, um revolucionário nacionalista judeu que estava disposto, para estabelecer o Reino de Deus, a pegar em armas numa luta contra os romanos.[37]
Certamente, Jesus foi crucificado (da mesma forma que outros agitadores sociais foram!) justamente por sua resistência. Afinal, a crucificação era a pena capital destinada, dentre outros, a subversivos, àqueles que resistiam à dominação romana. O título de "rei dos judeus", que antes havia sido dado a Herodes, o Grande, por Roma, também fora dado como forma de deboche a Jesus quando este foi crucificado. Isso também corrobora, segundo Crossan, a condenação política de Jesus: "O título e o destino, no pleno sentido religioso e político, indicava (sic) que Jesus fora executado por ter resistido à lei, à ordem e à autoridade romanas".[38] E a narrativa em Marcos que se refere aos dois “salteadores” que foram crucificados juntos a Jesus também ajuda a evidenciar o caráter político da condenação dele. Elucidando essa passagem de Marcos, escreveram Borg e Crossan: "Marcos diz que Jesus foi crucificado entre dois 'salteadores'. A palavra grega traduzida como 'salteadores' é comumente usada para guerrilheiros que lutavam contra Roma, que eram “terroristas” ou 'lutadores pela liberdade', dependendo do ponto de vista. Sua presença na história nos lembra que a crucificação era usada especificamente para pessoas que se recusavam sistematicamente a aceitar a autoridade imperial romana. Os criminosos comuns não eram crucificados. Jesus é executado como um rebelde contra Roma, entre dois outros rebeldes contra esta nação."[39]
Em Q, os ensinamentos de Jesus são também radicais no sentido de despojamento, de renúncia ao mundo, aos bens materiais e também aos laços familiares, de críticas aos ricos e às convenções sociais etc., como pode ser lido nos trechos abaixo:
"Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde a traça e a deterioração [os] fazem desaparecer e onde os ladrões assaltam e roubam. Acumulai, antes, para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a deterioração [os] fazem desaparecer e onde os ladrões nem assaltam nem roubam. Lá onde está o teu tesouro, lá estará também o teu coração."[40]
"Levantando os seus olhos para os discípulos, dizia: 'Bem-aventurados os mendigos, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados os que chorais agora, porque rireis.'"[41]
"Enquanto iam a caminho, disse-lhe alguém: 'Seguir-te-ei para onde quer que fores'. Jesus respondeu-lhe: 'As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho da Humanidade não tem onde reclinar a cabeça'. E disse a outro: 'Segue-me'. Mas ele respondeu: 'Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar o meu pai'. Jesus disse-lhe: 'Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Quanto a ti, vai anunciar o reino de Deus'. Disse-lhe ainda outro: 'Seguir-te-ei, Senhor, mas primeiro permite que me despeça da minha família'. Jesus respondeu-lhe: 'Ninguém que põe a mão ao arado e depois olha para trás está apto para o reino de Deus.'”[42]
"Se alguém vem encontrar comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até a própria vida, não consegue ser meu discípulo. Quem não carregar a sua cruz para vir atrás de mim não consegue ser meu discípulo."[43]
"Pedi e ser-vos-á dado; procurai e encontrareis; batei [à porta] e ela ser-vos-á aberta. Pois todo aquele que pede, recebe; e quem procura, encontra; e a quem bater [à porta], ela ser-lhe-á aberta. Ou será que existe alguém entre vós, a quem o filho vai pedir pão: [esse pai] não lhe dará uma pedra, não? E se lhe vai pedir um peixe: não lhe dará uma cobra, não? Se vós, sendo iníquos, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai, o nos céus, dará coisas boas àqueles que lhe pedem."[44]
"Mas eu vos digo que não vos oponhais a quem vos faz mal. [A] quem te bater na face direita, vira-lhe também a outra. E a quem quiser pôr-te em tribunal para te tirar a tua capa, cede-lhe também a túnica. E quem te forçar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir e não vires as costas àquele que te quer pedir emprestado. Ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Mas eu vos digo: amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para vos tornardes filhos do Pai vosso, do que está nos céus, porque ele faz nascer o sol para maus e bons e chover em cima dos justos e dos injustos. Se amais aqueles que vos amam, que compensação tendes [nisso]? Os cobradores de impostos não fazem o mesmo? E se cumprimentais apenas os vossos irmãos, que fazeis de excepcional? Os pagãos não fazem o mesmo? Pois vós sereis realizados, tal como realizado é o vosso pai celeste.”[45]
Esses e outros ditos em Q, e alguns deles também se encontram no evangelho de Tomé, levaram alguns estudiosos, como Crossan e Mack, a defenderem, respectivamente, que Jesus era “um camponês judeu cínico”[46] e um “mestre cínico”.[47] Mack, tratando das sentenças de Jesus citadas acima, escreveu: "As sentenças mordazes de Jesus em Q¹ mostram que seus seguidores o viam como um sábio do tipo cínico. Os cínicos eram conhecidos por mendicância, pobreza voluntária, renúncia às necessidades básicas, rompimento dos laços de família, atitudes destemidas e despreocupadas e comportamento em público desagradável. Os temas ordinários do discurso cínico incluíam a crítica aso ricos, à pretensão e à hipocrisia, exatamente como em Q¹. E os cínicos se orientavam para tópicos do tipo indiferença às repreensões, não-retaliação e autenticidade no cumprimento de sua vocação, valores que estão na dianteira das instruções de Jesus em Q¹".[48]
No evangelho Q, e também no evangelho de Tomé, não encontramos nada referente a prisão, tortura, morte e ressurreição de Jesus, embora, segundo Crossan, a(s) comunidade(s) de Q soubesse(m) da perseguição letal a seu líder. Crossan ainda adverte que: "Esta ausência deve sempre ser lembrada, mesmo ao enfocarmos aqueles cinco evangelhos, Mateus, Marcos, Lucas, João e Pedro, que possuem uma narrativa da Paixão-Ressurreição. Se a narrativa da Paixão é história relembrada, por que não há um traço dela no texto remanescente do Evangelho Q?"[49]
Por fim, algumas perguntas surgem: Por que a(as) comunidade(s) de Q não se interessou(aram) pela Paixão-Ressureição de Jesus? Será que para tal(ais) comunidade(s) mais importante do que a morte e suposta ressurreição de Jesus não seriam os seus ensinamentos? Será que tal(ais) comunidade(s) não cria(m) na ressurreição de Jesus? Muitas são as perguntas sem respostas nesse caso. Considerando os desafios que essa fonte impôs ao estudioso da Bíblia e do Jesus histórico, Mack, em sua análise do evangelho Q, escreveu: “O livro de Q nos força a repensar as origens do cristianismo como nenhum outro documento primitivo jamais o fez”.[50]
Conclusão
Quando isolamos os ditos de Jesus em Q e os analisamos independentes de Mateus, Marcos, Lucas e, principalmente, de João, considerando o contexto histórico, social, econômico, político e religioso das pessoas por trás dessa fonte, vislumbramos Jesus e seu seguidores muito diferentes das representações feita nos evangelhos canônicos, escritos décadas após o evangelho Q. Parafraseando o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o Jesus de Q, embora extremamente religioso como outros e outras pessoas de sua época e lugar, é “humano, demasiado humano”, com todas as preocupações e conflitos dos humanos de sua época e localidade.
Independentemente de quem tenha sido o Jesus histórico, se um "profeta apocalíptico", um "reformador de Israel", um "camponês judeu cínico", um "zelota", " ou um "mestre cínico", a imagem de Jesus que se depreende de uma análise cuidadosa de Q é a aquela de alguém que se colocou contra a opressão que o sistema exercia sobre os mais pobres, sobre os camponeses explorados, é a imagem de alguém que denunciava e condenava as elites políticas e religiosas pelas mazelas sociais e morais de seu tempo e que por isso foi crucificado como um agitador social, perigoso para a dominação romana e para a manutenção do poder das elites políticas e religiosas de Jerusalém, e nesse ponto parece haver consenso entre os estudiosos do Jesus histórico.
Talvez nesses ensinamentos e nas atitudes do Jesus de Q estejam a importância da mensagem do Jesus histórico: a luta contra a opressão, contra as injustiças sociais. É na perspectiva dessa dialética que Q parece estar inserido.
Referências
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Notas
[1] Cf. MACK, Burton L. O evangelho perdido: o Livro de Q e as origens cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 1994, pp. 22-23; ARMSTRONG, Karen. A Bíblia: uma biografia [livro eletrônico]. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 144.
[2] MACK, op cit., p. 26.
[3] MACK, op. cit., p. 26.
[4] Cf. CHEVITARESE, André Leonardo, FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico: uma brevíssima introdução. Edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Kliné, 2016, p. 18.
[5] EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? Mais revelações inéditas sobre as contradições da Bíblia [livro eletrônico]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 168.
[6] Ibid., p. 169.
[7] Tradição oral usada só por Lucas e que “possivelmente é composta de várias fontes”, de acordo com EHRMAN, Bart D. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014, p. 88.
[8] Tradição oral usada só por Mateus que também parece ser composta de várias fontes, conforme EHRMAN, op. cit., p. 88.
[9] Cf. HORSLEY, Richard A., HANSON, Jonh S. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995, p. 8; CHEVITARESE; FUNARI, op. cit., p. 12; EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O quer Jesus não disse? Quem mudou a bíblia e por quê? Rio de Janeiro: Agir, 2015, p. 30.
[10] Embora haja consenso entre os estudiosos de que os primeiros seguidores de Jesus eram analfabetos, sobre o próprio Jesus ter sido ou não um iletrado, há divergências. Cf. por ex., CHEVITARESE; FUNARI, op. cit., pp. 72-77; EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? Mais revelações inéditas sobre as contradições da Bíblia [livro eletrônico]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 119.
[11] FARIA, Lair Amaro dos Santos. “Quem vos ouve, ouve a mim”: oralidade e memória nos cristianismos originários. Edição revista. Rio de Janeiro: Kliné, 2021, pp. 28-29.
[12] HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o Reino Deus e a nova desordem mundial [livro eletrônico]. São Paulo: Paulus, 2004, p. 69.
[13] Cf. CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 40.
[14] Cf. HORSLEY, op. cit., p. 74.
[15] CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos. Questões e debates metodológicos. Edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Kliné, 2016, p. 17.
[16] Ibid., p. 17.
[17] Ibid., p. 19.
[18] CROSSAN, John Dominic. O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 99.
[19] Ibid., p. 108.
[20] Ibid., p. 108.
[21] Por entendermos ser uma tradução mais próxima do sentido original de “ptôkhós”, palavra grega usada para traduzir a palavra hebraica “ebyon” (mendigos, pedintes), preferimos o uso de “mendigos”, tal como aparece na tradução dos evangelhos feita por Frederico Lourenço, direto do grego para o português, em lugar de “pobres”, como geralmente se lê nas traduções da Bíblia. Cf. BÍBLIA, volume I: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 245.
[22] Cf. Mt 5: 2-6; Lc 6: 20-21.
[23] Cf. MAYER, Marvin. O Evangelho de Tomé: as sentenças ocultas de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 55.
[24] GOODMAN, Martin. A classe dirigente da Judeia: as origens da revolta judaica contra Roma, 66-70 d.C. rio de Janeiro: Imago, 1994, pp. 15-16.
[25] Cf. HORSLEY, Richard A. Jesus e a espiral da violência: resistência judaica popular na Palestina Romana. São Paulo: Paulus, 2010.
[26] Cf. HORSLEY, Richard A., HANSON, Jonh S. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995; HORSLEY, Richard A. Jesus e a espiral da violência: resistência judaica popular na Palestina Romana. São Paulo: Paulus, 2010.
[27] Ibid., p. 112.
[28] HORSLEY, op. cit., p. 278.
[29] Ibid., p. 278.
[30] Ibid., p. 278.
[31] HORSLEY, op. cit., p. 14.
[32] Ibid., p. 93.
[33] Ibid., p. 107.
[34] Ibid., p. 15.
[35] CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em busca de Jesus: debaixo das pedras, atrás dos textos. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 18.
[36] Ibid., pp. 303-310.
[37] Cf. ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
[38] CROSSAN; REED, op. cit., p. 203.
[39] BORG, Marcus J.; CROSSAN, John Dominic. A última semana: um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2010, pp. 181-182.
[40] Mt 6: 19-21; Lc 12: 33-34.
[41] Lc 6: 20-21; Mt 5: 2-6.
[42] Lc 9: 57-62; Mt 19: 22.
[43] Lc 14: 26-27; Mt 10: 37-39.
[44] Mt 7: 7-11; Lc 11: 9-11.
[45] Mt 5: 39-48; Lc 6: 27-36.
[46] CHEVITARESE; FUNARI, op. cit., 60-61.
[47] MACK, op. cit., p. 235.
[48] Ibid. pp. 112-113.
[49] CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 41.
[50] MACK, op. cit., p. 13.
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