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Os Padres Apostólicos e o dízimo (70-135)

Atualizado: 22 de mai. de 2021


Depois da morte dos apóstolos (a maior parte deles parece ter morrido até o ano 70) quem assumiu o legado da Igreja foram os chamados Pais da Igreja ou, especificamente neste caso, Padres Apostólicos, que eram destacados bispos ou presbíteros na Igreja Apostólica. São eles: Clemente de Roma (c. 35-100), Inácio de Antioquia (c. 35-107), Policarpo de Esmirna (c. 69-155) e Papias de Hierápolis (c. 70-140). Seus escritos estavam nos moldes das epístolas neotestamentárias, mas não se encontra em tais escritos nenhuma menção a prática do dízimo entre os cristãos. Inácio de Antioquia, além de não fazer menção ao dízimo em nenhum de seus escritos, em sua carta aos magnésios (8-11) e aos filadelfienses (5,6) teceu críticas ásperas respectivamente aos “judaizantes” e ao judaísmo. Por “judaizantes” deve se entender os judeus cristãos que achavam que a Igreja, incluindo os gentios (os que não eram judeu), deveriam observar os ritos da lei mosaica. Paulo já havia criticado os “judaizantes” ao longo de sua Epístola aos Gálatas. Ou seja, desde Paulo há uma crítica ao cumprimento da lei mosaica pelos cristãos. E o dízimo está inserido nessa lei.


Outros três escritos importantes do Período dos Padres Apostólicos são: O Pastor de Hermas, a Didaqué (ou Doutrina dos Apóstolos) e a Carta de Barnabé. O Pastor de Hermas durante muito tempo foi considerada uma obra inspirada e, por isso, chegou a ser colocada por alguns cristãos da antiguidade como parte do Cânon do Novo Testamento. Em vários trechos da supracitada obra (HERMAS 17:1-6; 27:4-6; 38:10; 51:5-10) o autor trata da assistência aos necessitados (motivo da existência do dízimo no judaísmo), mas em momento algum cita o dízimo como uma forma de ajuda entre os cristãos. Quanto a Didaqué, esse documento tornou-se conhecido após sua primeira publicação em 1883, pelo metropolita grego de Nicomédia Monsenhor Filoteo Bryennios. Ele publicou sua cópia a partir do original grego datado de 1056. Após a publicação de Bryennios outras versões parciais da Didaqué foram encontradas, inclusive dois fragmentos gregos datado do século IV ou começo do século V (Didaqué, 2012, p. 11), o que comprovou que tal escrito era mais antigo do que se imagina. Hoje, os estudiosos admitem que a Didaqué foi compilada no final do período apostólico entre os anos de 90 e 100, em alguma comunidade da síria, da Palestina ou de Antioquia (Didaqué, 2012, p. 13).


Com a necessidade de estruturar e organizar as várias e crescentes comunidades cristãs no final do período apostólico, em um momento de transição da Igreja, surge um conjunto de regras eclesiásticas conhecidas como Didaqué. Trata-se de instruções para rituais litúrgicos e convivência comunitária, de um tratado de moral para quem deseja fazer parte da comunidade cristã através do batismo etc. Mesmo com todas as suas regras, incluindo aquela que trata do ato de ajudar aos necessitados (cap. 4) e dos deveres da comunidade para com o sustento dos profetas (cap. 13), em nenhum momento a Didaqué cita o dízimo. No capítulo 13, por exemplo, os profetas devem ser ajudados com as “primícias”, que é diferente do dízimo. De acordo com Kelly (2007, p. 253), ainda que a descrição das “primeiras frutas” citadas na Didaqué esteja de acordo com o texto de Números 18, tal descrição não faz referência ao dízimo. Já Croteau, escreve que a Didaqué não faz referência ao dízimo, mas “afirmou o princípio de 1 Coríntios 9:14 de que os ministros têm o direito de viver do evangelho.” (CROTEAU, 2005, p. 9; tradução nossa).


Já a Carta de Barnabé, como nos diz, Potestá e Vian (2013, p. 40), é um escrito polêmico atribuído a Barnabé, um companheiro de Paulo, com o objetivo de conferir autoridade ao texto, e que data, provavelmente, entre anos de 130 e 132. Esse texto também é chamado de pseudoepígrafo, por ser um texto ao qual é atribuída uma falsa autoria. Esse escrito mostra um antijudaísmo cristão iniciado desde muito cedo com as controvérsias judaico-cristãs ainda na época dos apóstolos, no começo da década de 50 (cf. Atos 15). A intenção principal do autor dessa carta não é a de mostrar uma superioridade do cristianismo sobre o judaísmo, como faz outros autores cristãos do primeiro século, mas, segundo Marques (2016, p. 40), é de “desconstruir a religião judaica”. Na carta, o autor não trata do dízimo. Aliás, ainda de acordo com Marques (2016, p. 33), para o autor, a lei mosaica foi mal interpretada pelos judeus, e que pela idolatria foram preteridos por Deus como povo eleito. O autor da referida carta acreditava que o sentido da lei deveria ser apreendido de uma hermenêutica alegórica e não de forma literal.

Conclui-se, portanto, que em nenhum dos mais importantes documentos cristãos do período sub-apostólico (ou período dos Padres Apostólicos) que chegaram até nós, e que analisamos acima, há informações que comprovem o ensinamento e a prática do dízimo na Igreja durante esse período. E, como veremos num próximo artigo, o dízimo, na verdade, só foi instituído pela Igreja em 585, no Concílio de Mâcon, na Gália. E além de ter se tornado parte da legislação eclesiástica, o poder civil, na pessoa do imperador Carlos Magno, também estabeleceu, em 779, através de uma lei capitular, a obrigatoriedade ao pagamento do dízimo por parte dos franceses (cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 1975, pp. 32,33).


 

Bibliografia

ANTIOQUIA, Inácio. Cartas. In: Padres Apostólicos. Tradução: Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística)

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Pastoral do Dízimo, estudo 8. 5ª ed. São Paulo: Paulinas, 1975.

CROTEAU, David A. A Biblical And Theological Analysis Of Tithing: Toward a theology of giving in the new covenant era. 2005. 336f. Dissertação (Mestrado) – Southeastern Baptist Theological Seminary, Wake Forest, North Carolina. Disponível em: http://digitalcommons.liberty.edu/fac_dis/17/ Acesso em: 17 ago. 2017.

DIDAQUÉ: catecismo dos primeiros cristãos. Prefácio, tradução do original grego e comentários de Urbano Zilles. 10 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

EPÍSTOLA DE BARNABÉ. In: Padres Apostólicos. Tradução: Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística)

KELLY, Russell Earl. Should the Church Teach Tithing?: A Theologian’s Conclusions about a Taboo Doctrine. Lincoln: iUniverse, 2007.

MARQUES, José da Cruz Lopes. Considerações sobre a controvérsia judaico-cristã no pseudo-Barnabé. São Paulo, v. 10, n. 17, jan/jun, 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/view/26845. Acesso em: 12 nov. 2017.

O PASTOR DE HERMAS. In: Padres Apostólicos. Tradução: Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística)

POTESTÁ, Gian Luca; VIAN, Giovanni. História do Cristianismo. Tradução: Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

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