Morte e pós-morte nos xamanismos e cristianismos
- Igor Emerich

- 2 de nov.
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À direita está a imagem de um túmulo medieval gerada por IA e à esquerda pode-se ver uma imagem de um ritual xamânico (créditos: Vecteezy).
Devido à nossa cultura ocidental tendemos a enxergar a morte e concebermos o pós-morte nos moldes dos ensinamentos cristãos. Contudo, há uma diversidade de concepções sobre tais temas entre as mais variadas religiões. Comparemos, por exemplo, a morte e o pós-morte para os cristianismos tradicionais e para os xamanismos gerais, que são as formas mais antigas de religiosidade e um conjunto de práticas espirituais presentes em diversas culturas (siberiana, indígena americana, asiática, africana), datadas do Paleolítico.
Se para os cristianismos tradicionais a morte segue-se de um julgamento e um Juízo Final e seria a morte física e espiritual uma consequência do pecado. Nos xamanismos geralmente a morte é entendida como uma passagem para outro plano da existência (Plano Superior [da luz e dos espíritos do bem], Plano Médio [onde moram os seres humanos e os espíritos da terra], Plano Inferior [trevas onde estão os espíritos maus]), quando há uma transformação dessa alma/espírito, e representa um evento natural do ciclo da vida.
Para os cristianismos tradicionais, na morte a alma, que é imortal, é separada do corpo, sendo reunida ao corpo glorificado no fim dos tempos conforme o dogma da ressurreição. Embora em geral os xamanismos também ensinem que a alma/espírito é imortal, creem, ao contrário dos cristãos tradicionais, que com frequência essa alma/espírito se separa do corpo e essa separação é acompanhada pelo xamã. Essa alma/espírito pode viajar e ser resgatada, e depois da morte, para continuar o ciclo da vida e a jornada evolutiva, a alma/espírito reencarna em outros corpos humanos ou animais.
No que diz respeito à condução da alma do(a) fiel ao encontro com Deus, o clero católico administra os sacramentos (como a Unção dos Enfermos), reza pela alma e leva a cabo ritos funerários (exéquias) que preparam o(a) fiel e intercedem pela sua salvação. Já nos xamanismos gerais, o guia/mediador entre o mundo dos vivos e dos mortos é o xamã (pajé), que faz uma viagem extática para garantir uma passagem tranquila para a alma/espírito do(a) falecido(a), evitando que tais espíritos causem mal aos vivos da comunidade.
Na visão dos cristianismos tradicionais, no pós-morte a alma segue para a comunhão com Deus no Paraíso (Céu) ou para danação eterna no Inferno ou, conforme algumas tradições, para a purificação temporária no Purgatório, de acordo com a fé e as obras de cada indivíduo durante sua vida terrena. Para os xamanismos em geral, a alma/espírito ou se integra ao reino dos Ancestrais, ou continua sua jornada em outros mundos, podendo influenciar os vivos no que diz respeito a curas, caças e até punições. O cosmos é, portanto, acessível e negociável na concepção de quem aceita essa crença xamânica.
Com relação ao luto e aos ritos funerários dos cristãos tradicionais, eles enfatizam a esperança na ressurreição e o conforto na fé. São feitas orações e missas pelos mortos que buscam auxiliar a alma em seu destino final. O objetivo é a salvação dessa alma e a vida eterna junto a Deus no Paraíso. Para os xamanismos em geral, os ritos com frequência envolvem a destruição de pertences do(a) morto(a) e tabus de nome, ou seja, a proibição de se pronunciar o nome desse(a) morto(a) a fim de não perturbar a alma/espírito dele(a) e para que ele(ela) não permaneça e afete a saúde da comunidade. O objetivo desses ritos xamânicos é garantir a manutenção do equilíbrio cósmico.
Essas crenças religiosas xamânicas e cristãs sobre a morte e o pós-morte, além de muitas outras, influenciaram e foram influenciadas por outras crenças religiosas em processos de longuíssima duração, quer seja por sincretismo, apropriação cultural ou por princípios universais de conexão com o sagrado. Os xamanismos arcaicos influenciaram as crenças de morte de pós-morte, por exemplo, nas religiões afro-brasileiras (candomblé e umbanda), nas religiões asiáticas (budismo, bramanismo e hinduísmo), no neopaganismo, no wicca, no espiritismo, entre muitas outras. Já os cristianismos também influenciaram diversas religiões, dentre elas o espiritismo kardecista e alguns xamanismos, tais como os de povos indígenas da floresta amazônica, que sofreram catequeses e conversões forçadas durante o período de colonização, o que resultou em perda cultural e linguística para esses povos, que não foram meros receptores passivos, mas resistiram e reinterpretaram aspectos do cristianismo dentro de suas próprias lógicas culturais. Mas esses cristianismos também foram influenciados por outras religiões em vários aspectos, dentre eles está a concepção de morte e de pós-morte. No que tange, por exemplo, às crenças cristãs de Céu e Inferno, ressurreição dos mortos, luta entre o bem e o mal, julgamento final, anjo e demônios e livre arbítrio, essas crenças são de influência do zoroastrismo (também conhecido como masdeísmo) e foram adaptadas pelo cristianismo.
Como podemos notar, no fundo essas crenças religiosas, sejam xamânicas, cristãs ou quaisquer outras, mesmo muito diferentes entre si, tentam dar sentido à morte, o mais terrível e temível dos acontecimentos humanos, aquilo que a nossa espécie tenta evitar a todo custo, inclusive através da ciência. Para essas crenças, morrer não é o fim, mas o começo de uma nova vida, uma vida eterna. Aliás, o objetivo das religiões sempre foi o de nos ajudar a lidar com questões existenciais (qual o sentido da minha vida?, quem sou?, o que acontece depois da morte? Qual o meu propósito? etc.). São essas crenças que nos ajudam a amenizar a dureza e a indiferença da realidade que todos nós enfrentamos e sempre enfrentaremos enquanto vivermos.
Referências
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