Foi em 1910, na Universidade de Princeton, em New Jersey, Estados Unidos, que presbiterianos inconformados com os rumos do protestantismo formularam a doutrina da infalibilidade da Bíblia. Eles apresentaram uma lista com os dogmas que consideravam imprescindível para sua concepção de cristianismo. Esses dogmas são: “(1) a infalibilidade das Escrituras; (2) o nascimento virginal de Jesus; (3) a remissão dos nossos pecados pela Crucifixão; (4) a ressureição da carne e (5) a realidade objetiva dos milagres de Cristo” (ARMSTRONG, 2009, p. 237).
Como nos diz Armstrong (2009, p. 237), entre 1910 e 1915, Lyman e Milton Stewart, dois milionários do ramo do petróleo que haviam fundado uma instituição cristã de ensino para fazer frente a uma abordagem liberal da Bíblia, financiaram a publicação de uma série de doze panfletos intitulada The Fundamentals, escrita por importantes teólogos conservadores. Esses panfletos defendiam os dogmas fundamentalistas, contudo, como registra Armstrong (2009, p. 237), eles não suscitaram muitos debates críticos e tampouco tinham um teor radical ou militante. Foi só durante a Primeira Guerra Mundial que o protestantismo conservador veio a se tornar fundamentalista, isso devido as convicções pré-milenaristas desses protestantes norte-americanos (cf. ARMSTRONG, 2009, p. 237). Para esses cristãos a guerra representava o fim dos tempos, uma luta entre o Bem e o Mal, Deus e Satã. Essa visão desencadeou um discurso xenofóbico e antimoderno. Sobre isso, a autora citada nos diz: “Contudo essa visão se devia ao pavor. Era xenofóbica, temia a influência estrangeira que se infiltrava na nação por intermédio dos católicos, dos comunistas e dos adeptos da crítica superior. Essa fé fundamentalista repudiava a modernidade. Os protestantes conservadores eram ambivalentes em relação à democracia: ela conduzia à ‘oclocracia’. A uma ‘república vermelha’, ao ‘governo mais diabólico que este mundo já viu’. Instituições guardiãs da paz, como a Liga das Nações, estavam imbuídas do mal absoluto, segundo os fundamentalistas. A Liga era claramente a morada do Anticristo, que, dissera são Paulo, enganaria a todos com suas mentiras. A Bíblia afirma que no fim dos tempos haverá guerra, não paz, de modo que a Liga estava no caminho errado. Na verdade o Anticristo pareceria um pacificador. A aversão dos fundamentalistas a esse e outros organismos internacionais revelava também um medo visceral da centralização da modernidade e um pavor de tudo que sugerisse um governo mundial. Confrontadas com o universalismo da sociedade moderna, algumas pessoas instintivamente se refugiavam no tribalismo” (ARMSTRONG, 2009, p. 238-39).
Paradoxalmente, esses cristãos fundamentalistas, “a seu modo [...] eram modernistas fervorosos. Graças a sua tentativa de retornar aos ‘fundamentos’, alinhavam-se com outras correntes intelectuais e científicas do começo do século XX. Embora fossem baconianos, e não kantianos, adoravam o racionalismo científico tanto quanto outros modernistas. [...] Longe de ser um salto no escuro, a fé dependia de ‘observação exata e pensamento correto’. As doutrinas eram fatos, não especulações teológicas. Eis aí uma postura religiosa totalmente moderna, distante anos-luz da espiritualidade pré-moderna do período conservador. Os fundamentalistas estavam tentando criar uma nova religiosidade numa época que valorizavam acima de tudo o logos da ciência. Só o tempo diria até que ponto essa tentativa teria sucesso, mas Dayton* revelara que o fundamentalismo era má ciência, incapaz de alcançar os padrões científicos do século XX” (ARMSTRONG, 2009, p. 247).
Ou seja, esse posicionamento fundamentalista foi uma resposta clara à teologia liberal, que ao fazer uso do método histórico-crítico (ou “crítica superior”, como usado pela autora citada), um método de interpretação da Bíblia que valoriza uma abordagem científica e racional dos textos sagrados dos cristãos, pôs em xeque todos esses dogmas tão caros ao cristianismo, e à modernidade, que também trouxe prejuízos para essas crenças fundamentalistas Hoje o termo “fundamentalismo religioso” é usado de forma mais ampla, não se restringe mais aos cristãos, e é usado com frequência para se referir a muçulmanos extremistas.
Nota
* Cidade do Tennessee onde em 05 de maio de 1925, o professor John Scopes foi acusado de ensinar a teoria da evolução, proibida no estado pela Lei Butler. O julgamento Scopes, como ficou conhecido o caso, dividiu os Estados Unidos entre os que defendiam o evolucionismo e os fundamentalistas cristãos, que defendiam o criacionismo, e forçou uma grande mudança do sistema educacional americano.
Bibliografia
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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