Nessa obra, Jacques Le Golff (1924 -2014), um dos mais importantes medievalistas e membro da terceira geração da Escola dos Annales (movimento historiográfico do século XX que se destacou ao incorporar métodos das Ciências Sociais à História), nos apresenta o pano de fundo da invenção do Purgatório. Muitos estudiosos entenderam a mentalidade medieval e a literatura desse período como algo impregnado de elementos fantásticos e sobrenaturais, isso porque viam esse período com as suas próprias lentes e não sob a ótica das pessoas de então. Le Goff conseguiu captar que o que hoje chamamos de elementos fantásticos e sobrenaturais na mentalidade e na literatura medieval eram, na verdade, enxergado pelas pessoas daquele período como algo real. Por isso o medievalista apresenta em seu livro uma história do imaginário medieval viva e dinâmica. Segundo Le Goff: "A organização dos diferentes espaços: geográfico, econômico, político, ideológico etc., onde se movem as sociedades é um aspecto muito importante de sua história. Organizar o espaço de seu além foi uma operação de grande impacto para a sociedade cristã. Quando se espera a ressurreição dos mortos, a geografia do outro mundo não é um assunto secundário. E pode-se esperar que haja relações entre a maneira como tal sociedade organiza seu espaço neste mundo e seu espaço no além, pois os dois espaços estão ligados por meio das relações que unem a sociedade dos mortos e a dos vivos" (p. 11 do livro eletrônico).
A construção desse "terceiro lugar", como Lutero se referia ao Purgatório, foi se dando ao longo de séculos (da Antiguidade a Baixa Idade Média), e Le Goff nos mostra como isso foi acontecendo, como esse imaginário de uma nova geografia do Além foi se moldando e se impondo. Se para Santo Agostinho o Além era binário, ou seja, Céu/Inferno, no final do século XII esse sistema já podia ser visto como tripartite, ou seja, Céu/Purgatório/Inferno. Conforme Le Goff: "Quando o purgatório se instala na crença da Cristandade ocidental, entre aproximadamente 1150 e 1250, de que se trata? É um além intermediário onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada pelos sufrágios – a ajuda espiritual – dos vivos. Para que se chegasse até aqui, foi necessário um longo passado de ideias e de imagens, de crenças e de atos, de debates teológicos e, provavelmente, de movimentos nas profundezas da sociedade, que dificilmente percebemos" (p. 11 do livro eletrônico).
A importante obra literária que cristalizou o Purgatório no imaginário medieval foi escrita por Dante Alighieri, e intitulada A Divina Comédia. Le Goff nos diz que: "O melhor teólogo da história do purgatório é Dante" (p. 23 do livro eletrônico).
O nascimento do Purgatório é uma obra de suma importância para quem deseja estudar as mudanças na soteriologia católica no medievo.
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Tradução: Maria Ferreira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. (588 páginas)
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