
Há séculos no Brasil a religião indígena e principalmente a de matriz africana vêm sendo condenadas como “diabólicas” por cristãos, mas paradoxalmente, muitos elementos e rituais dessas religiões foram e vêm sendo incorporados e praticados também por cristãos. Sobre a demonização de tais religiões no Brasil colonial, nos diz o antropólogo e historiador Luiz Mott (2010, p. 24): “As terras dos pagãos eram consideradas domínio de Satanás. Está era a visão que a Igreja tinha das religiões nativas na época do Descobrimento. Os sacerdotes dessas crenças eram rotulados de feiticeiros, agentes do diabo. Frei Vicente de Salvador (1564-1635), nosso primeiro historiador, dizia que o próprio nome do Brasil simbolizava as brasas do fogo do inferno, e o padre Anchieta relatava em 1560: ‘Há certos demônios aqui, a que os índios chamam Curupira, que os atacam muitas vezes no mato, dando-lhes açoites e ferindo-os bastante’. Em meados do século XVII, um nobre cavaleiro da Bahia denunciava à Inquisição portuguesa: ‘Aqui há tanta quantidade de negros e negras feiticeiros que não se pode particularizar’. E nas Minas Gerais, no século XVIII, um morador de Vila Rica desabafava: ‘Estas minas estão bastante infectadas do Demônio!’”
Contudo, Mott nos revela que embora tais religiões fossem demonizadas e seus adeptos “[...] perseguidos pelas justiças do bispo, da Inquisição e do rei, podendo ser presos, açoitados, mutilados e até degredados para a África [...]”, muitas pessoas de “[...] todas as camadas sociais [incluindo os próprios clérigos católicos] e grupos étnicos, mesclando, na maioria das vezes, rituais europeus medievais com cerimônias ameríndias e africanas”, praticavam às escondidas, ou às vezes até de forma explicita, aquilo que era proibido e considerado do demônio pela Igreja e pela coroa. Mesmo “combatidas pelas autoridades da Igreja, as práticas de feitiçaria às vezes proliferavam nos próprios espaços do catolicismo” (MOTT, 2010, p. 25). De acordo com Mott: “O caso mais comprometedor de envolvimento clerical com bruxarias remete-nos à Bahia, entre 1730 e 1740. Para exorcizar uma enferma, o carmelita calçado frei Luiz de Nazaré ordenou que matassem um porco. Com a banha, fez um unguento para passar na barriga da doente e mandou que os miúdos do animal, depois de cozidos, fossem depositados numa encruzilhada, tarde da noite. Usava erva-espinheira, erva-de-são-caetano, carvão e bolo armênio para a lavagem das enfermas. Ao ser consultado pelo senhor de uma escrava endemoninhada, foi categórico: ‘que mandassem a preta aos curadores chamados calunduzeiros [calundu, segundo Mott, foi trocado por ‘candomblé’, no século XIX], porquanto a dita queixa eram feitiços a que chamam calundus, e os exorcismos da Igreja não tiravam aquela casta de feitiços por serem cousa diabólica’” (MOTT, 2010, p. 25).
Essa contradição, a demonização dos cultos de matriz africana e ao mesmo tempo o uso de elementos, palavras e rituais que lembram esses cultos, hoje pode ser vista em algumas igrejas neopentecostais. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), por exemplo, a maior e mais representativa igreja neopentecostal do Brasil, talvez por uma questão de marketing para atrair adeptos de religiões de matriz africana (diferente, portanto, nesse aspecto ao que aconteceu no Brasil colonial como lemos acima), ao mesmo tempo em que transforma em “demônios” os orixás do candomblé, e, principalmente, as entidades, guias e orixás da umbanda (cf., por. ex., MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 2001), faz uso de elementos, palavras e rituais que aludem a esses cultos (sobretudo a umbanda), tais como o uso de sal grosso e da arruda por um sacerdote vestido de branco numa reunião chamada “Sessão Espiritual do Descarrego”, ou só “Sessão do Descarrego”, que em chamadas da igreja na TV, por vezes também recebe o nome de cerimônia de “abre-caminhos”. “Além disso, na Umbanda é forte a presença da Mãe-de-santo e do pai-de-santo como sacerdotes, e de outras entidades que representam uma figura paternal, como os pretos-velhos. Seguindo essa linha, a IURD passa a se referir a Deus por diversas vezes como ‘Pai das Luzes’” (MEDEIROS, 2007, p. 6). Embora “Pai das luzes”, seja uma referência ao Deus cristão feita na Epístola de Tiago 1:17, fica clara a estratégia da IURD em usar esse epíteto no contexto da referida “Sessão Espiritual do Descarrego”.
Bibliografia
MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 2001.
MEDEIROS, Rangel de Oliveira. Discursos sobre Doença e Cura na Igreja Universal do Reino de Deus. Associação Nacional de História – ANPUH, XXIV Simpósio Nacional de História, São Leopoldo, 2007. Acesso em: 27 maio 2021. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548210414_526695a4baeac5c620fb989181ea4ee1.pdf.
MOTT, Luiz. Benditos pactos diabólicos. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 5, nº 56, pp. 24-25, maio 2010.
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